Quero a inocência de volta
O meu circo era assim. Matinés em tempo de Carnaval. Pipocas, chupas, balões, binasgas de água, as serpentinas, buzinas e cornetas. Cor, holofotes, vertigens, aplausos, ás e ós. O apresentador incentiva palmas, anuncia exclamações e suspense, e apresenta números de malabaristas em bicicleta, acrobacias em cavalos, piruetas no trampolim, cães às cambalhotas, equilibrismo com pratos, magia, leões ou tigres magros, animais domesticados (pai, o que são antipodistas?), ajudantes que rodam as mãos à espanhola, traje a rigor, vermelho escarlate, azul ópera e dourados, muitos dourados, sapatilhas de ballet, brilhantes, chapéus e smokings. E como não podiam faltar, os palhaços e os pombos dos ilusionistas. Tudo em linguagem circense: Malabaristas Empoleirados, o grupo exótico da elevada Escola de Nadia Dobritch; Os Meteoros Líquidos, bando acrobático chinês da província de Anhui, a Festa do Camelo da Família Leonida Casarelli, ou mesmo, The Flying Brothers, no trapézio voador; o bando de Focas Adestradas de Jacqueline Paris; Quadro aéreo do Duo Iuri e Nathalia, sem rede. Sem rede. O grupo misto de cavalos e elefantes de Los Hermanos Guerrero; Flávio Ritcher, o ilusionista do Cirque Soleil; os Caniches de Madame Lara Farrell; sei lá. Rober, o equilibrista no arame, Miriam Rosi na corda indiana, Xeny Brothers, malabarismos em balancé; Os Anjos Brancos, saltadores de báscula; Coronel Joe e seus Tigres da Malásia. Shin Ti Pao, a contorcionista da Mongólia. O intervalo, livre, era passado a brincar e a correr.
O meu circo é assim: sem rede e sem arame, o espectáculo aéreo centra-se em duas actuações de Érica. Érica Sem Mais. Uma em corda e, outra, em “panos chineses”. Uma na primeira parte, outra na segunda. O ajudante, o mesmo que abre as cortinas e vende os ingressos, não roda as mãos nem dança os pés. Abana a corda. E os panos. Érica muda a toillete, aperta as cordas, instala os panos, contorce-se. Vale-lhe o rabo. O malabarista Moisés, brinca com as massas, que insistem em cair. Abana a cabeça. Sai, triste. O domador de leões, gordos, diga-se de passagem, não faz número. Ensina que o animal deve ser domado com bocados de carne e não com violência. Nada de botas, preto e vermelho, ou chicote. Limita-se a alinhar três leões em cima de banquetas e a chamar o “mais feroz” para o bocado de carne. É o dono do circo. Para o trampolim saltam os Irmãos Trampolim. Um alto e magro que faz de estúpido. Um médio gordo que faz de trapalhão. O que está vestido de Floribela faz de irmã. E um miúdo de uns dez anos faz de esperto. Nada de espectacular. Muitas cambalhotas. Ainda há tempo para uma actuação a solo. Um suposto número músico-cómico, onde um personagem vestido de maestro, mas sem batuta, o mesmo que fazia de Floribela, faz solos em saxofone, trombone, corneta, serrote, garrafa de vidro e papéis. Feliz é a gargalhada que culmina com um ronco. Igual à imitação que se faz de um porco. Ao intervalo, assalto às pipocas, algodão doce e águas. A arena é invadida por um pónei. A atracção: voltinha de dois euros e foto. Só para crianças abaixo dos oito anos, claro. O pior são as famílias que estragam o esquema e querem na foto os seus mais velhos e ainda por cima todos juntos. Nada de fotinha individual. De volta às luzes, e tal como anunciado, vem Walter Jasmim e os seus animais exóticos. Cabrinhas anãs, um dromedário, um camelo, o touro cornudo, uma ema, uma avestruz e os póneis, agora em número de três, que se limitam, também, à voltinha à arena. O dromedário, o touro e a ema lá subiram para a banqueta. Ah, o camelo agradece ao público, fazendo uma vénia. Já não há o número do tigre Rambo. Faz dois anos que arrancou o braço a Mónica, mulher de um dos ajudantes. “Mónica sabe o que fez. Meteu o braço entre as grades, queria fazer uma festinha ao animal,” veio nos jornais. Passados uns tempos, Rambo morre. Morre? A seguir vem Paulo. “Paulo e Sua Partenaire”. Um número de equilibrismo em cima de skates. Ou plataforma com esferas. Como quiserem. Temi por ele. Era muito parecido com o malabarista Moisés. A sua partenaire dança, roda mãos e braços. Ora o pé direito ou o esquerdo. Também vendeu pipocas. Tem as meias de rede, remendadas. O fim aproxima-se. E com eles, a palhaçada. O carro que se desfaz. Os litros de água derramada. Os ruídos escatológicos. As chapadas sonoras. O palhaço rico substituído por uma mulher, gorda e feia, porque é mais politicamente correcto. A criancinha continuando a fazer de “o esperto”. Tropeções. Apitos e cornetas. O costume. Um ponto a favor: nada de vozinhas estridentes à Croquete e Batatinha. Dois: nada de flor que deita água. E três, até: nada de nariz-bola vermelho e tortas na cara. Ao anfitrião e apresentador, João Galiso ou Calipso, falta-lhe ânimo. De fraque aba-de-grilo e sandália de salto prateada e brilhante, penteado de anúncio para donas de casa dos anos oitenta, diz, apenas, “magnífico”. “Espectacular.” Famoso há vinte anos é mais conhecido por Zizi Jeanmaire. Travesti, tratador e domador de répteis. “De Paris para a Cruz de Pau, Zizi Jeanmaire trata as bichas por tu”, foi o título de uma das suas entrevistas.
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1 Comments:
Esta história é muito grande para se ler sem tapa na pantera... nem sei como consegui. Nunca gostei de circo, nem quando era criança! Mas uma vez apaixonei-me por um trapezista da televisão, era giro que se fartava e eu devia ter 13 anos... Até escrevi sobre ele no meu diário. Essas paixões eram tão lindas!! Ooohhhhh.... (sigh!)
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