28.4.08

A pdi

Margarida, frente ao espelho da sua casa-de-banho, espia as rugas e as olheiras. Lava os dentes, a dentadura (dois dentes de baixo), e a língua – coisa de fumador... Passaram cinco anos da idade de morrer.
Embora sem educação cristã marcara essa data para morrer – os trinta e três anos, idade de Cristo. Nascera em tempos de revolução e evolução como agora lhe chamam. Revolução também dos pais, das ideias, da busca pela liberdade. Altura em que apenas se acreditava no boom, na evolução das espécies, na descendência dos macacos e nos homens como um corpo sem alma. Ashes to ashes, dust to dust, tão só. Nem sequer fora baptizada. Tinha algumas amigas na catequese – as cafonas, as betinhas, as pirosas. Para matar tempo, assistiu a algumas “aulas” e pouca coisa fixou. O padre da sua paróquia conhecia-a bem, a ela, à sua família e aos seu pais – os libertinos. Por alturas do crisma de uma amiga ainda se aventurou e foi para a fila da comunhão. Chegada a sua vez, o padre, demasiado alto para ela, ainda para mais em cima do púlpito, apenas lhe estica o dedo indicando o adro. Por isso nunca provou hóstia o tal corpo de deus excepto numas broinhas de amêndoa, cheias de ovos e meia queimadas, que a tia-avô comprava para os chás de canasta.
Dizia então, alguma coisa lhe deve ter ficado, como a qualquer comum dos mortais, dessa religião – a cristã mais Jesus Cristo. Talvez por isso, desde criança, e quando pensava que a vida era demasiado longe, marcara essa data para morrer.
Sempre teve pressa em viver. Deixou de estudar logo, começou a trabalhar cedo demais, arranjou casa, formou família, teve vários empregos e várias profissões em degrau ascendente. Aos 28 quase parou, teve o primeiro filho. Acalmou. Assim, nem grandes feitos ou esforços. Mas não era a chegada da morte que a movia, não, apenas pressa, pressa. Não, não pensava na morte, nem que iria morrer. Essa era uma ideia antiga, terrível, romântica até. Coisas de miúda. No aniversário dos 33, só lhe passou pela cabeça essa ideia, quando deitou a cabeça na almofada, «será que acordo?» Acordou, nunca mais pensou nisso ou marcou outra data para morrer.
Agora com 38, e frente ao espelho, observa as rugas e a passagem do tempo. Rugas – poucas – manchas na cara, quase sinais, essas sim sinais de tempo, já em demasia.
Lembra-se de um episódio com mais de dez anos e também à frente de um espelho. Desta vez acompanhada da irmã mais velha. Ambas se separariam nesse ano e nessa data, princípios de um novo ano para começar uma outra vida. Dia de passagem do ano. Uma com 25 anos, outra com trinta. Olhavam-se. Comparavam rugas, gorduras, deformidades. Meu d’us, como se houvesse alguma! Tão novas, bonitas, frescas.
Voltou a olhar-se ao espelho. Não estava mal. Não era feia nem nenhuma estampa. Tinha um ar fresco. Talvez parecesse mais nova do que era, mas isso, só os olhos dos outros confirmavam. Estava gorda, achava-se gorda. Tentava agora uma última dieta... deixava de comer, «nada como agrafar a boca.» Bebia litros de café e água, e quando a fome apertava merendava uma bolacha Cream Cracker para a enganar. Apenas jantava, e comia de tudo – sem exageros –, e verdes, coisa detestável. Nada de saladas – verdes, verdes cozidos: brócolos, nabiças, couve. Assim ia. Seria preciso só mais uma semana e ficaria nos trinques. Boa – boa como sempre fora. A mais bem feita e cheiinha das irmãs e amigas. Gostava das suas ancas – «as trancas». «Belas coxas», dizia-lhe o marido. Não gostava dos ombros demasiado largos, das bolsinhas de gordura ao pé dos sovacos, ou das «pegas do amor» – que a barriga demasiado flácida pelos anos de gravidez faz, e que a deixa sem cintura, mas com um pneu que chega às costas como os corpos das pretas volumosas. «São precisos mais dois quilos.» Dois quilos apenas. Quanto às «pegas», ficariam decerto, eram uma de sua marca. Recorda-se de como os filhos (principalmente os rapazes) a apertam, por trás. Os refegos acolhedores: «a mãe é molinha.»
Agora, agora e frente ao espelho ri-se. Daqui a uns anos – marquemos dez – lá estará de novo frente ao espelho, queixando-se das rugas, das manchas, dos quilos a mais, dos brancos que pinta, dos dentes que criam espaços e da dentadura que não pára de crescer, da celulite, dos sinais brancos espalhados pelo corpo... E vai, vai rir-se e olhar para trás. «E há dez anos dizia que estava gorda e velha.» Vai rir-se, sim, e espantar-se, porque vai achar que é nessa altura que está mais perto, mais perto da morte e da idade que não escolheu para morrer.
Agora, em frente ao espelho, lembra-se por que está assim. Lembra-se da velhinha, no outro carro, no sinal fechado. Velhinha, velhinha e serena, serena, sentada no lugar do morto. E de como essa velhinha a comoveu. E das palavras do seu marido quando lhe contou: «É só a partir dos quarenta que se começa a pensar na morte...» «Outra vez», acrescenta ela.
Ainda faltam dois anos.

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4 Comments:

At 2:31 da manhã, Anonymous Anónimo said...

.. e aos 62 anos pensa-se que ainda temos muito para fazer e pouco tempo para esse muito.
Já não se olha para o espelho... e que se lixem as rugas e os pneus, é tão bom comer!!!
A espera do príncipe encantado ao tempo que já se foi, assim como a crença na existência dessa figura.
Ficamos com o que temos e olhando para o lado até achamos o nosso melhor que o das outras...talvez por questão de hábito ou do cheiro.
Os velhos cheiram menos bem e ao cheiro do meu já estou habituada.
Sei lá o que é!! Ainda a mania já um pouco longínqua de que tudo tem que ser explicado.
O que sei é que esses corpos sarados que mostram por aqui já não me dizem nada.
Prefiro a tudo uma boa gargalhada!!!!
O teu texto está lindo
Escreves muito bem...que tal umas crónicazitas algures?
Parabéns
Mãe da TS

 
At 2:36 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Esqueci de falar da morte, quando reli é que me lembrei.
Pois é coisa de que não me lembro muito, sei lá se por enquanto, sei lá porquê!!
Tenho muito que fazer amanhã....

 
At 2:42 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Ah!!!
Esqueci de dizer que, parece que ao contrário dos outros, sempre desejei chegar a esta idade.
Achava que as obrigações e os problemas teriam nessa altura acabado.
Santa inocência. Mesmo fugindo para longe muito longe,não acabam. Ou vêm ter comigo ou vou pescá-los.
Não consigo ser a velhinha que tanto desejei, a tal sentada no lugar do morto, no carro ao lado, tranquila e serena, serena e tranquila.

 
At 9:02 da manhã, Anonymous Anónimo said...

fabuloso texto
nota 20 ou mais se houver

 

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