«Cadê Francisco?»
[Na Praia de Buraquinho há poucos anos atrás.] Dia de homenagem da «Colônia de Pescadores 57» a seu santo protector, São Francisco. A maior azáfama. Areias limpas, cabanas enfeitadas e caixas de «51» (cachaça) que aguardam ser esvaziadas. Os barcos, adornados com flores e fitinhas coloridas, sobem o rio. Só falta ir pegar «o Francisco» para a procissão.
O presidente da colônia, Touro, está preocupado. De há uns anos para cá que o padre de Portão tenta sabotar a peregrinação... a acha profana. E põe entraves ao empréstimo do santo. Mas nem mesmo assim, Touro contava com as surpresas desse dia. Finda a missa, o Padre, protegido e encorajado por um grupo de beatas, «dessas tipo puxa-saco», diz que não... o santo não pode sair da igreja.
Foi a zorra. A colónia reclama «por direito» e a população diz que é obrigação da igreja emprestar o santo. Os ânimos se exaltam e todo o mundo se envolve na conversa. Farto da discussão, Touro agarra no santo e se prepara para sair. Padre e beatas puxam para a direita, pescadores e comunidade de Portão para a esquerda. São Francisco, de um lado para o outro, «parece até que bebeu cachaça».
O sacerdote, por fim, cede. Lá deixa partir o santo, mas... sem coroa, sem cajado e escoltado por «seguranças»... as «beatas puxa-saco». São Francisco é colocado no barco de Touro que, seguido pelos outros pescadores, começa a procissão pelo rio.
A comunidade os segue por terra, cantando e tocando atabaques. O «grupo puxa-saco» se benze, pois as canções entoadas são em ritmo afro... cheinhas de axé. O percurso pelo Rio Joanes abaixo, demora cerca de uma hora e chegado o santo à praia é celebrada a «homenagem». Depois, o depositam na casinha da Colónia e todo o mundo cai fora. Hora de comer e, sobretudo, tomar água [beber cachaça]. As «seguranças» se separam e as menos «severas» caem na folia. Todo o mundo canta, todo o mundo dança. A maior festa. Mas cedo se faz tarde e começa a escurecer. É hora de levar o santo de volta à igreja, em romaria, desta vez por terra. Touro escolhe os pescadores mais fortes e menos bebidos para carregar o andor e... Mas... «cadê o santo?»
Pára a música, pára a dança! «Cadê Francisco?» São Francisco sumiu! Os pescadores desorientados correm a praia sem saber o que fazer, «que ousadia!» As beatas, de joelhos na areia, rezam, «mas quem, no seu perfeito juízo, rouba um santo!» Mulheres em pânico gritam «é melhor chamar a polícia.» Um corre-corre, uma aflição danada, uma agonia. Os mais «calmos» (leia-se «menos bebidos») se penduram no orelhão...
E é por telefone que chega a explicação. O santo está na igreja. Já está na Igreja. As beatas «puxa-saco» o levaram no pico da festa. «Ousadia feia!»
Unidos e sem barulho, pescadores, comunidade e «beatas light», marcham rumo à igreja. Ao grupo se vai juntando gente e mais gente, indignada com o sucedido. Até São Pedro decide se pronunciar e desaba uma chuva intensa que toda a noite cai.
A multidão invade a igreja, tira São Francisco de seu altar o coloca no andor e, ali mesmo, na porta da igreja, começa sua procissão por ruas de Portão. E não houve procissão maior, mais emocionada. Festa, música, chuva e dança, ao som da cachaça, São Francisco balança... no andor.
[A Colônia Pescadores 57, com sede na Praia de Buraquinho, pertence à prefeitura de Lauro de Freitas. A povoação mais próxima e onde vive maior parte dos pescadores se chama Portão. A procissão da praia à igreja atravessa a Estrada do Coco. Antes de Buraquinho, fica Vilas do Atlântico.]
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