Andar de autocarro faz bem
Ainda não tinha reparado nele mas já sentia que havia alguém a olhar para mim no banco do lado. Aquelas coisas que todas as pessoas sentem quando se sentem observadas. Quando olhei para ele congelei. Não consigo explicar muito bem como é que ele era, mas era daqueles que dão cabo de uma mulher em três tempos. E olhava sem receio. Mas também não olhava à descarada. Estava naquele meio termo que mostra qualquer coisa mas não mostra tudo.
Um miúdo vestido de pirata senta-se a lado dele. Que melhor desculpa tinha eu para me aproximar? «Que medo, um pirata», digo a brincar. O miúdo sorriu e pergunto-lhe logo a seguir: «És dos bons ou dos maus?» «Dos bons», responde a sorrir. Ele, mesmo ao lado, ouvia atentamente a nossa conversa. «Ah, é que se fosses dos maus eu ia-me já embora! Mandava já já parar o autocarro!», digo eu a sorrir e a olhar para ele que agora olhava para mim de uma forma intensa. O miúdo, entre nós dois, sorria e explica-me que estava assim vestido «por causa do teatro da escola». Ele continuava a olhar para mim, fixo, sem pestanejar. Mas agora sorria e mordia os lábios, quase como se estivesse a segurar as palavras. Isto dito assim soa a piroso, mas era o que parecia na altura.
Na última paragem da viagem, no Cais do Sodré, quando estávamos os três a sair, ele diz para mim e para o miúdo: «Cuidado: olhem que, às vezes, os bons gostam de se disfarçar de maus para fazerem muitas asneiras» e atira-me um sorriso cúmplice.
Foi o melhor piropo do ano. Pelo menos o mais elaborado. Andar de autocarro faz bem. Não poluímos tanto e ganhamos auto-estima.
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1 Comments:
You give him the eyes... confessa. Até logo. [TS]
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