2.6.08

Um tia no Rock in Rio [4]

(cont...)

Fila. Fila não, bicha tremenda. Apenas uma faixa em plena auto-estrada. Vai ser longa a viagem. Carrega no play. Aquela voz, com o volume no máximo, invade o carro e rebenta-lhe o coração. As lágrimas caiem-lhe, imparáveis. Indomáveis. Não é possível que o que assistira possa ser verdade. «Decadência humana, declínio, ferida aberta, frágil, impotência, exploração da desgraça e sofrimento alheio, voyerismo, maldade», palavras que lhe assolam os pensamentos. Não podia ser verdade. Não acreditava. Um filme. Só pode ter sido um filme. E como foi a tia ali parar.
Apetecia-lhe pedir-lhe desculpa, desculpa. Desculpa por ter participado naquilo, por a ter ido ver, pelos risos alarves que presenciou mais as caganças e regozijo que há num «eu avisei, eu sabia que ia ser assim.». E pegá-la ao colo. Dar-lhe mimos e dizer-lhe «está tudo bem, está tudo bem». Salvá-la. Alguém tem que a salvar. Não pode ser... aquilo é tudo encenado. Tudo ensaiado, tudo pensado. Começando pelo atraso, os enrolados pedidos de desculpa, a voz rouca e a primeira música: Addicted. O copo na mão, que toda gente declara ser vinho enquanto a tia via um suco amarelo, com limão lá dentro. A ligadura no pulso. O corte no braço direito. As nódoas negras no pescoço. O lenço na mão. «Não me lixem.» Não há caracterização? Pintam-lhe os olhos demasiado negros e não lhe escondem as feridas? «Exposição da dor, mostra, montra.» Lágrimas que borram a pintura e lhe mancham a cara, mais. O microfone que não consegue ajustar, vejam bem a ligadura. O cone de prata no decote em que ela não pára de mexer. Ela naquele vestido, infantil, menina. O coração no cabelo com o nome do marido. A figura de um ser humano em sofrimento a cair dos saltos altos. O palco às escuras entre músicas. As conversinhas com a banda. Os ajudantes de palco que “reabastecem”. Tudo alusões a mais um cheiro de coca. Figuras tristes e demasiado ingénuas. Não é para isso que servem os agentes, a organização do festival? Alguém que decida por ela se pode ou não actuar? «Não quero acreditar. Não quero acreditar que estas noventas mil pessoas se divertem. Que era com isto que contavam. Que riem. Que não quisessem fugir. Não pode ser.» Isto é tudo fake. Só pode ser. E a única coisa que pode servir de consolo. A rouquidão até desaparece. A música até acompanha os picos de adrenalina e depressão. Só pode ser encenado. Até os ecrãs gigantes em dessincronização foram pensados. E Valerie, a última canção, com a imagem de um quase desmaio para os braços de alguém no backstage. Não, não há encores. O cachet é o mesmo. É a sua vingança. Fim do “espectáculo”. «Alívio.» Ainda pensou que ela voltaria, que diria um monte de merda e que despejasse o fel. «Era isto que queriam ver, satisfeitos?». Mas ela não voltou. Não houve final feliz e moralista. «Não me venham com Kurt Cobain, Jim Morrison, Janis Joplin, Elis Regina ou Cazuza. Não me interessa. Eu não estive lá. Não vi. Não participei.»

A fila entra na área de serviço. Há uma Operação Stop. Uma grande “operação”para apanhar gente de Cascais que foi ao Rock in Rio. A tia limpa as lágrimas. Desliga a música, faz o seu ar mais simpático, mais calmo, mais feliz. Uma loira sozinha no carro, às quatro e meia da manhã, cansada e com vontade de chegar a casa. O polícia encosta-se à sua janela. Ela sorriu, encarando-o. «Siga, boa-noite, desculpe o incómodo.»

«É isso, já passa, não foi nada. Este incómodo vai passar. E esta dor. Este mal-estar. Este sujo de ter participado numa história que não queria ver, fazer parte. E muito menos preparada. Se soubesse, teria ficado em casa, no quentinho, no limpinho, longe do mundo. Para onde vou agora tomar banho. Irónico chamar-se o Palco do Mundo, o sítio onde actuou. Está tudo bem, tudo bem. Esta sensação há-de passar. Também é do desmame da fluoxetina. Esquece. Viste uma lição muito bem planeada. Orquestrada. Um dia saber-se-á. Está tudo bem, tudo bem.»

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3 Comments:

At 7:08 da tarde, Anonymous Anónimo said...

não sei o que se passa connosco, mas, de repente todas nós choramos muito... é do desmame, é!

 
At 7:21 da tarde, Blogger 1de30 said...

Qual desmame? Eu não ando a fazer dessas coisas e choro na mesma! :-/ R.

 
At 9:20 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Isto foi das melhores "descrições" (e interpretação) que eu já li do concerto da Amy.. Mas obviamente,não chorei a ler ;)
Mas peço licença para retirar um excerto do post para postar no meu.. (serve para o que serve e incluirei todos os créditos, of course).
Obrigado :)

 

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