A tia em dondoca em casa e em contagem decrescente. Tinha pensado pôr o disco da Amy Winehouse aos berros, em preparação para logo à noite. Não deu tempo. Nem jeito. Um sobrinho com febre, uma visita matinal, a filha que traz coleguinhas da escola para almoçar, a empregada que quer conversar. Interrupções. Lá para às seis, consegue finalmente sair de casa. Vai apanhar a amiga às avenidas novas. A mais descomprometida e divertida para estas coisas. A fila na Duarte Pacheco é imensa. Insiste. Resolve ir pelo túnel. Pior. Tem tempo nessa altura. Põe o cd aos berros. Ainda bem que está sozinha. Fuma vários cigarros, dança. Está bem disposta. «À catarse.» Solta-se. Quer ir dançar, pular, divertir-se. Apanha a amiga com uma hora e meia de atraso. Lisboa está o caos. Dirigem-se ao estádio de Alvalade onde vão deixar o carro e apanhar o shuttle para o Rock in Rio – afinal, são vips. O cd pára de tocar. Há combinações a fazer – bilhetes a mais. O telemóvel da tia fica sem bateria: «óptimo», pensa. Depois de várias transgressões lá conseguem entrar para o tal do Piso Dois do parque de estacionamento. Ainda no carro, trocam a indumentária. O blazer pelo blusão alcochoado, não vá fazer frio. E a mala pela maniconera de apertar à cintura. Prática. Num dos bolsos o bilhete de identidade e três maços de tabaco. A tia é previdente. Noutro, o talão do parque e as chaves do carro. A tia é arrumada. Noutro ainda, um maço de cigarros vazio, com três baseadinhos, já enrolados. Feitos! Uma tia é uma tia. Ainda havia outro compartimento, para o dinheiro e o ingresso, onde arrumou apenas o bilhete. A tia é esquecida.
No átrio, havia fila para o transporte mas ainda deu para um cafezinho e mais combinações. Viram caras da televisão, o presidente do Sporting, famílias com filhos, muitos blusões. A fila foi despachada para o grande autocarro. À tia e amiga coube o tal do shuttle de sete lugares. O ambiente era animado. O condutor, um miúdo de dezanove ou vinte anos, giro, estava triste – não iria ver os concertos. Tia e amiga tentaram consolá-lo. Pela janela viam-se magotes de pessoas, filas e filas. Pessoas que não tinham caminho aberto, estrada desimpedida, cordão de segurança. «Festa do Avante», pensou, «também já andei muito». À chegada despedem-se do rapaz... «foge, vem ao concerto, larga os vips num baldio.»
Entrada fácil, mais uma vez sem filas, encontrões, esperas. Gente, muita gente. Mas andava-se bem. Um enorme relvado em declive, com a foz no palco, e a constatação de que do palco e actuantes apenas se veriam o que nos servissem os enormes ecrãs, uns seis, ou mais – a tia não contou. Desceram em direcção ao maralhal. Queriam ver mais de perto a Ivete que já pulava. Pessoas, pessoas e pessoas. Jovens, crianças, cotas. Muitas famílias. Lá encontraram um lugar, menos recatado e sem crianças para acender o baseadinho. Ainda pularam, pouco. A amiga detesta música brasileira e havia que ir buscar o tal do ingresso a mais lá dentro à tenda VIP.
Tenda que vira desde que entrara. Um zepelin adormecido. Branco, enorme. Muito longe do palco. A entrada foi difícil. Pediram-lhe que esperassem. Havia gente a mais. Lá conseguiram entrar, onde tiveram que mostrar o bilhete a sete seguranças diferentes. Depois havia um corredor enorme, com focos de luz vermelha. Talvez indecente. Elas riam. Depois ataram-lhes uma pulseira ao pulso. Dura, verde, com enormes letras brancas VIP. O barracão era de facto enorme e com dois pisos. Em baixo filas para o jantar, para as bebidas e as sobremesas. Em cima, e de frente para enorme varanda, pufs brancos, enormes, serviam de descanso. Pornográfico, pensa a tia. Da varanda nada se via, apenas cabeças, estridentes e muito loiras. Do palco, nadinha. «Aqui não fico nem morta», pensou olhando o recinto à procura do portador do bilhete. A sede começava a apertar. Lá o encontraram, coitado, no meio do piso de baixo, a fazer de relações públicas. «Por favor, não me apresentes ninguém, não estou com “cabeça”», avisou antes de lhe dar um beijo e agradecer o bilhete a mais. Desculpou-se, tinha que ir ao portão três buscar a terceira amiga. «Até já.» Lá fora, ar... Gente aos pulos. Ivete gritava: «Portugal no coração, amigos, amizade, amo vocês, país irmão...» «Foda-se», escapou-lhe, «não há paciência.» As tias também dizem asneiras.
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